No começo dos tempos, Olodumare criou os homens […]
Orunmilá, também chamado Obá Jeunjeum,
ou “Rei-que-Come-Alimento”, na língua dos orixás,
ofereceu-se para levar os homens ao mundo e cuidar deles lá,
com o que Olodumare concordou plenamente.
Previdente, Orunmilá consultou o babalaô,
que o mandou oferecer sacrifícios antes de partir.
Ele deveria preparar sementes de legumes e tubérculos.
O ebó foi feito.
Do Orun, Orunmilá despejou essas ofertas na Terra.
Caindo no solo, as sementes germinaram, os tubérculos brotaram.
As plantas cresceram, dando folhas, frutos e sementes,
e foi com essa abundância que Orunmilá alimentou os homens.
Os serem humanos reproduziram-se e se espalharam pela Terra toda.
(Reginaldo Prandi, Mitologia dos Orixás)
Conta a mitologia iorubana que o universo foi criado por Olodumare, mas, terminada a criação, ele se afastou e deixou que os orixás dessem forma ao mundo e o governassem. Por conta disso, embora os devotos do candomblé reconheçam a existência de um deus supremo da criação, não é a ele que prestam homenagem em seus cultos de grande complexidade, sutileza teológica e beleza, mas justamente a essas outras divindades mais próximas, participantes ativos do dia-a-dia das atividades mundanas.
Diversidade regional e étnica
O candomblé não é um único culto religioso, mas antes uma série de cultos estreitamente aparentados, à semelhança de outras religiões que possuem diversas denominações, com algumas diferenças nos preceitos teológicos e no ritual. Os vários templos e vertentes do candomblé são normalmente agrupados em “nações”, sendo a mais conhecida e disseminada nos meios de comunicação a chamada nação queto. Juntamente com outras nações como efã, ijexá, nagô e mina-nagô, ela pertence ao tronco conhecido como iorubá, com origens africanas localizadas em partes da Nigéria e do Benim. Existem ainda candomblés de nações angola e jeje, entre outras menos conhecidas. O nome candomblé está historicamente associado aos cultos da Bahia, mas religiões semelhantes recebem outras denominações regionais, como xangô em Pernambuco, tambor de mina no Maranhão e batuque no Rio Grande do Sul. O termo candomblé, contudo, tem se disseminado para outras regiões do Brasil e para outros países à medida que a religião ganha mais adeptos. Até por conta dessas variações, algumas pessoas preferem simplesmente denominar esse conjunto de cultos com o nome de religião dos orixás, deixando de lado as diferenças entre eles.
Divindades
Sabe-se que, na Nigéria e no Benim, mais de quatrocentas divindades eram cultuadas no total. No Brasil, contudo, a maior parte dos templos de candomblé reconhece em torno de 20 orixás diferentes, cada qual associado a um aspecto do mundo natural ou humano. Por exemplo, no rito queto, enquanto Ogum é o orixá da metalurgia, da guerra e da agricultura, Oxum é uma divindade feminina ligada à água doce, à beleza e à vaidade. Nenhum orixá é completamente “bom” ou “mau”. Como os homens, com os quais se assemelham, eles são capazes do melhor e do pior, têm defeitos e qualidades e exibem características que podem ser produtivas em alguns contextos e destrutivas em outros. Cada orixá pode se subdividir em algumas “qualidades” ou “manifestações” particulares, cada qual associada a uma passagem ou episódio de sua mitologia: assim, enquanto Oxaguiã é o Oxalá jovem e está associado à cultura material, Oxalufã é o Oxalá velho e se associa à criação do homem. Em muitos templos, cada orixá tem um correspondente entre os santos católicos: assim, é comum que Iansã, orixá que comanda as tempestades, seja associada a Santa Bárbara. Enquanto na África cada templo é dedicado a apenas uma divindade, os templos ou terreiros do candomblé, ainda que tenham um orixá patrono, dedicam-se ao conjunto total das divindades.
Os nomes das divindades, bem como sua importância relativa na mitologia, podem variar de acordo com as nações. Nos candomblés angola, por exemplo, elas são chamadas inquices, enquanto o candomblé jeje as denomina voduns. Utilizamos aqui a terminologia iorubana porque é a mais conhecida e disseminada. Outras divindades também são cultuadas nos terreiros de algumas nações. Assim, alguns templos angola incluem entre suas entidades, além dos inquices, também os caboclos, ou entidades às quais se atribui origem indígena. No tambor de mina, além dos voduns, os fiéis também cultuam entidades femininas infantis conhecidas como tobossas.
Fiéis e iniciados
Os participantes de cada terreiro se dividem em uma hierarquia organizada de acordo com o grau de proximidade do fiel com as divindades. Segundo o candomblé, toda pessoa tem seu espírito ligado a um orixá específico – ou a um conjunto de orixás, em alguns casos. Atribui-se ao indivíduo características de personalidade condizentes com seu orixá patrono. Essa ligação pode ser estreitada por meio de uma complexa série de rituais de iniciação, os mais simples dos quais são a lavagem do colar de contas e o bori, cerimônia destinada a fortalecer o espírito do fiel e prepará-lo para o contato direto com o orixá. Esses estágios iniciais podem ou não se desdobrar na iniciação completa, por meio da qual o fiel, então chamado iaô ou filho-de-santo, torna-se um veículo de seu orixá na terra. Durante as cerimônias e festas públicas do candomblé, os filhos-de-santo são possuídos pelos seus orixás: neste importante momento do transe divino, o iniciado entra em uma espécie de estado de inconsciência enquanto o orixá “baixa” e toma o controle de seu corpo para dançar e encenar cenas míticas. Um filho-de-santo que tenha se iniciado há sete anos pode ganhar o título de ebômi e então ocupar diversos cargos especializados no terreiro, culminando nos títulos de babalorixá (“pai-de-santo”) ou ialorixá (“mãe-de-santo”), autoridades espirituais máximas de cada templo. Em cada um desses estágios, o fiel fortalece sua força espiritual – o axé – e seus laços com o orixá, entrando em contato com saberes rituais e mitológicos cada vez mais restritos. Contudo, também se sujeita a restrições e tabus progressivamente maiores.
Além dos iniciados propriamente ditos, todo terreiro possui um número de fiéis que não completaram sua iniciação (alguns dos quais jamais chegam a completá-la) e que não são possuídos pelos orixás. Trata-se dos ogãs e das equedes, que executam tarefas fundamentais do rito, como tocar os tambores ou paramentar e auxiliar os filhos-de-santo enquanto estes se encontram no transe divino. Por fim, nem todas as pessoas que frequentam um terrreiro ou recorrem à ajuda dos orixás participam ativamente do culto. Muitos comparecem apenas para presenciar a beleza das cerimônias, enquanto outros realizam consultas particulares com os babalorixás e ialorixás, nas quais estes normalmente consultam a vontade dos orixás por meio do jogo de búzios e orientam os clientes a respeito de como propiciar os deuses para obterem a solução para seus problemas.
Os toques e festas
A parte mais pública e conhecida do candomblé são os toques, como são chamadas as cerimônias e festas públicas da religião. Cada terreiro possui um calendário litúrgico com diversas festas em homenagem aos diferentes orixás. Destacam-se as cerimônias que iniciam o ano-novo do calendário do candomblé, entre agosto e setembro, como as do “Inhame Novo” ou as “Águas de Oxalá”, bem como o ciclo de festas que se estende entre setembro e dezembro, homenageando várias divindades na sequência. Além disso, os orixás podem ser cultuados em várias outras circunstâncias.
A estrutura básica do toque se repete: ele se inicia pela manhã com o sacrifício ritual dos animais cujo sangue – veículo máximo do axé ou da força espiritual – é ofertado aos orixás, enquanto a carne é preparada para ser consumida pelos fiéis durante a festa. A festa se inicia com uma oferenda a Exu, divindade que abre os caminhos, e depois seguem-se os cantos e danças com os quais os orixás são homenageados em uma sequência conhecida como xirê. É neste momento de celebração que, ao som dos atabaques e dos cantos dedicados a cada divindade, os orixás descem à terra e dançam através dos corpos de seus filhos. É comum que uma primeira possessão seja seguida de um recolhimento do filho-de-santo, que depois retorna paramentado com as roupas e acessórios de seu orixá para a dança dos deuses. Os cultos do candomblé são conhecidos por sua rica iconografia, que fascina e encanta aqueles que assistem às cerimônias.
Uma “metafísica sutil”
Muitas vezes se dá demasiada atenção às festas do candomblé, que são seu aspecto mais público e visível, deixando de considerar que a religião dos candomblés também corresponde a toda uma visão de mundo. O candomblé propõe uma relação bastante individualizada entre o fiel e o orixá que é seu patrono. Com isso, sua diversificada mitologia fornece um instrumento a partir do qual organizar e compreender melhor a diversidade dos homens e de suas ações no mundo e orientar o comportamento das pessoas. Embora reconheça divisões e às vezes até conflitos entre os orixás e seus filhos, também afirma que o universo só se sustenta a partir de uma trama de comunicações, interações e complementaridades entre as partes. Cada fiel deve render homenagem a seu orixá, mas é toda a comunidade que se beneficia das bênçãos coletivas do conjunto dos orixás. O que seria de uma comunidade que preza pela guerra de Ogum, mas é incapaz de promover o amor de Iemanjá? Assim, o candomblé ensina a seus fiéis que diferentes tipos de ação ou personalidade, diferentes fenômenos da vida cotidiana, antes de serem intrinsecamente bons ou ruins, são necessários à continuidade saudável vida desde que se exerçam com harmonia. Além disso, o candomblé está longe de oferecer apenas força espiritual para os filhos-de-santo, pois esta vem sempre acompanhada de restrições e obrigações que correspondem também às suas responsabilidades perante os deuses e as comunidades das quais são apenas uma parte.
Tendências demográficas
Pode-se dizer que, longe de ser um resquício do passado, o candomblé é hoje uma religião moderna e em plena expansão em diversas regiões do país e também do exterior, haja vista seu crescimento em países como a Argentina ou os EUA. Historicamente, a religião dos orixás, em suas várias denominações, sempre esteve mais atrelada a centros urbanos como Salvador, Recife, São Luís ou Porto Alegre, tendo se consolidado no século XIX. A partir dos terreiros baianos, ela se disseminou para o Rio de Janeiro no início do século XX e depois para São Paulo, onde teve uma grande expansão nos anos 1960. Pode-se dizer que o candomblé, desde suas origens, sempre teve um potencial universalizador, pela sua capacidade de unir culturas e divindades africanas de diversas procedências diferentes, e também pelo fato de sempre ter atraído pessoas de diversas origens étnico-raciais para seus ritos. Apesar disso, até os anos 1960, ele podia ser considerado uma religião que abrangia predominantemente as populações negras, histórica e culturalmente vinculadas ao culto dos orixás. Isso mudou muito na segunda metade do século XX, com um movimento crescente de diversificação étnico-racial dos fiéis e com uma tendência do candomblé de atrair cada vez mais as classes médias e escolarizadas. Alguns autores atribuem essa tendência a um desencanto crescente com outras religiões dominantes no Brasil, ao tipo de ligação pessoal e individualizada do fiel com os deuses promovida pelo candomblé e a uma rejeição crescente à cultura moderna secularizada.
Segundo dados do censo de 2000 realizado pelo IBGE, mais de 127 mil brasileiros se declararam adeptos do candomblé. Esse número aumenta bastante se considerarmos todas as pessoas que frequentam os terreiros durante as festas públicas e consultas particulares, uma vez que muitas delas não podem se declarar fiéis por não terem passado pelos ritos de iniciação. Desse número, 23% se declararam negros, 38% pardos e 37% brancos. O candomblé está muito longe, portanto, de ser uma religião negra ou étnica, mostrando-se um culto capaz não apenas de encantar, mas de suprir as necessidades e aspirações espirituais de inúmeros e variados fiéis, que dedicam sua vida à beleza dos festejos e à honra de serem os filhos diletos dos orixás, os veículos do sagrado na terra.
Fontes de pesquisa:
– AMARAL, Rita; SILVA, Vagner Gonçalves da. Foi conta para todo canto: as religiões afro-brasileiras nas letras do repertório musical popular brasileiro. Afro-Ásia, Salvador: Centro de Estudos Afro-Orientais/UFBA, n. 34, p. 189-235, 2006.
– BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil: contribuição a uma Sociologia das interpenetrações de civilizações. São Paulo: Livraria Pioneira Editora/Editora da Universidade de São Paulo, 1971.
– O candomblé da Bahia: rito nagô. Ed. rev. e ampliada. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
– DANTAS, Beatriz Góis. Vovó nagô e papai branco: usos e abusos da África no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
– MATORY, James Lorand. Black Atlantic religion: tradition, transnationalism, and matriarchy in the Afro-Brazilian candomblé. Princeton/Oxford: Princeton University Press, 2005.
– PRANDI, Reginaldo. Herdeiras do axé: sociologia das religiões afro-brasileiras. São Paulo: Hucitec, 1996.
– Mitologia dos orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. SILVA, Vagner Gonçalves da. Orixás da metrópole. Petrópolis: Vozes, 1995.
FONTE: http://www.museuafrobrasil.org.br/pesquisa/indice-biografico/manifestacoes-culturais/candomble